Espelho, espelho meu, quem sou eu?
Vik Muniz - Narciso
Ainda está em cartaz o filme
“Mirror, Mirror” (Espelho, Espelho Meu), baseado num dos contos mais famosos
dos irmãos Grimm: “Branca de Neve e os Sete Anões”. É ao espelho que a madrasta má faz suas perguntas.
O espelho está
presente na vida cotidiana, pode ser na simples representação física do objeto - na
decoração de nossas casas, dos prédios residenciais e comerciais, nas lojas e
shoppings, cinemas e teatros, nas alegorias carnavalescas, nos elevadores e
halls, nas ruas e banheiros públicos
Ou nos símbolos que
trazem referências passadas. É o espelho que leva Alice para um de seus mundos
mágicos.
É um tema privilegiado da filosofia
e da mística. Forte é sua presença, mais intensa ainda
é sua simbologia. É um paradoxo dentro de nós, porque revela e oculta,
sensibiliza e choca, aponta e camufla.
Espelho, espelho meu, quem sou eu?
John Derian - Mirror
Muitas pessoas se relacionam com
outras como uma espécie de espelho. Nesta relação espelhada, a mola que
impele o meu ser é o outro porque, de alguma maneira, quero atingi-lo, ou
me sinto atingida por ele.
Quando o outro me incomoda
Temos em nossa essência o céu e o inferno, anjos e demônios, o
bem e o mal que aguardam nossas escolhas e opções. Enquanto não conhecermos
este inferno, este lado obscuro ou sombrio, jamais ele será céu porque não
sairemos dele.
Na realidade, o que me incomoda no outro não é ele, mas o que
está dentro de mim. É uma reação de reflexo.
Enxergamos nas pessoas tudo
àquilo que gostamos e não gostamos em nós mesmos. Se estas partes estiverem bem
resolvidas em nós, seremos capazes de ver os outros como eles realmente são e
não como uma projeção nossa.
Como não podemos ver a nós mesmos, precisamos de um espelho para
nos enxergar: “Você é meu espelho e eu sou o seu.”
O convívio
Do
mesmo modo que as coisas têm um valor, um preço, as pessoas também têm um valor
que é a dignidade. Se eu não me relacionar comigo mesmo corro o risco de perder
meu valor de gente, minha dignidade, e receber um valor conforme minha
utilidade.
Quanto
melhor for a relação que desenvolvo comigo mesmo, mais sinto que existe dentro
de mim algo que vale a pena e que posso confiar. Nessa relação de nós com a
gente mesmo elevamos a autoestima, investimos em nós e desenvolvemos
relacionamentos saudáveis em que pode haver dois.
Portanto, antes de conviver
com o outro precisamos poder conviver com a gente mesmo. Léa Michaan
Para a relação
ser criativa e saudável
“É importante
que eu esteja consciente do clima emocional e mental que ronda em mim (mau
humor, ódio, sentimento de inferioridade, inveja, raiva, dependência, enfim,
sentimentos negativos) para não contaminar o relacionamento, pelo menos não em
demasia”. Léa Michaan
“Para estar consciente e poder me relacionar livre
disso com a outra pessoa preciso me relacionar comigo mesmo: percebendo-me,
mantendo um dialogo interno, distinguindo o que é meu e o que é do outro e
abrindo a consciência para estar lúcido e perceber se me irrito com o outro, ou com algo que ele faz ou diz, ou se a irritação já estava
dentro de mim, e eu uso o outro como desculpa para explicar a minha
irritação.
Se algo que ele
diz me irrita ou me deixa zangado, é porque se engancha em algo que está em mim. O que o outro diz e
me incomoda, na realidade só despertou um sentimento quanto a mim mesmo que já
me incomodava, e que eu não tratei.
Se a pessoa foi rude, grosseira, insensível. Isto é
problema dela, afinal, por que eu ficaria tão incomodada com o outro que é
grosseiro?
Se enganchar em
mim, a solução é me analisar e conhecer meus ganchos. A melhor maneira para
resolver esta relação é pensando no que acontece comigo e não naquilo que esta
ruim com o outro”. Léa Michaan
Afinal, só é
possível mudar algo em mim, e é inútil ter a
pretensão de modificar o outro. Bater na mesma tecla dizendo e redizendo sobre
o que o outro tem que mudar é pura perda de tempo e não leva a nada. Léa Michaan é psicóloga
Mas temos o livre arbítrio e a
capacidade de mudar, de tecer nossa vida de maneira bela e criativa
Liliana Porter – arte de bolso
como fez “A Moça Tecelã”
Por Marina Colasanti
Acordava ainda no
escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo
se sentava ao tear.
Linha clara, para
começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os
fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais
vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante
muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros,
bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a
acalmar a natureza.
Assim, jogando a
lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para
frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe
faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E
eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha,
suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de
lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o
que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e
tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira
vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia
seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a
entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos
poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo
aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o
último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou
abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi
entrando em sua vida.
Aquela noite,
deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para
aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi,
durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os
esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a
não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é
necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram
dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes
para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa,
já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa
se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente
ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias,
semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e
salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o
sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o
dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando
o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio
ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o
mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que
ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave,
advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia
a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de
moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo
o que queria fazer.
E tecendo, ela
própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com
todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar
sozinha de novo.
Só esperou
anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas
exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da
torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não
precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e
jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu
tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os
jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as
maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu
para o jardim além da janela.
A noite acabava
quando o marido estranhando a cama dura acordou e, espantado, olhou em
volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho
escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as
pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o
emplumado chapéu.
Então, como se
ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi
passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na
linha do horizonte.
Meu coração espelha
meu eu através do meu olhar
e das minhas ações.
Maria Célia